Você já contratou algum serviço — uma viagem, um curso, um procedimento estético — e, por algum motivo, precisou cancelar antes de utilizar o que foi contratado? E, ao tentar cancelar, descobriu que o contrato previa uma multa de 35% sobre o valor total?
Esse tipo de cláusula tem se tornado cada vez mais comum, mas o fato de estar escrita no contrato não significa, necessariamente, que ela seja válida.
Neste artigo, vamos explicar por que cláusulas como essa podem ser consideradas abusivas e o que a lei diz sobre a cobrança de multas por cancelamento.
O que é cláusula penal e por que ela existe?
A cláusula penal é um dispositivo que prevê uma multa a ser paga quando uma das partes descumpre o contrato. Em tese, ela serve para evitar o descumprimento do acordo e compensar prejuízos do outro lado.
Nos termos da Ministra Nancy Andrighi:
A cláusula penal compensatória constitui pacto acessório, de natureza pessoal, por meio do qual os contratantes, com o objetivo de estimular o integral cumprimento da avença, determinam previamente uma penalidade a ser imposta àquele que der causa à inexecução, total ou parcial, do contrato. Funciona, ainda, como fixação prévia de perdas e danos, que dispensa a comprovação de prejuízo pela parte inocente pelo inadimplemento contratual. (STJ – REsp: 1617652 DF 2016/0202087-2, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, Julgado em 26/09/2017)
O problema é quando essa penalidade é desproporcional — e, em vez de proteger o equilíbrio contratual, acaba favorecendo indevidamente uma das partes, quase sempre o fornecedor.
O que diz a lei sobre multas por cancelamento?
O Código Civil brasileiro, no artigo 413, prevê que o juiz pode reduzir o valor de uma multa contratual sempre que ela for exagerada ou quando a obrigação principal tiver sido parcialmente cumprida.
Além disso, temos o chamado Decreto nº 22.626/33, conhecido como Lei da Usura, que, em linhas gerais, impõe um limite de 10% para penalidades contratuais. Ou seja: quando o valor da multa ultrapassa esse percentual, principalmente em contratos de consumo, é possível discutir sua validade judicialmente.
Veja-se alguns exemplos do ordenamento jurídico pátrio:
O art. 408 do Código Civil estabelece que, aquele que, culposamente, deixar de cumprir a obrigação, incorre de pleno direito na cláusula penal. A cláusula penal moratória é estipulação lícita e não se caracteriza abusiva e desproporcional em relação obrigacional não regida pelo CDC quando estipulada no equivalente a 10% sobre o valor inadimplido. O valor fixado a título de cláusula penal de 20% se mostra excessivo, impondo-se sua readequação para 10% sobre o valor da obrigação principal. RECURSO PROVIDO. (Agravo de Instrumento, Nº 5035350-17.2024.8.21.7000, Décima Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Clovis Moacyr Mattana Ramos, Julgado em: 10-04-2024)
Nos termos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e dos arts . 412 e 413 do Código Civil/2002, é possível a redução da cláusula penal se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo. (STJ – AgInt no AREsp: 658605 ES 2015/0018399-7, Relator.: Raul Araújo, Quarta Turma, Julgado em 08/05/2023)
E o Código de Defesa do Consumidor?
Em contratos entre empresas e consumidores, o CDC entra em cena para reforçar a proteção da parte mais vulnerável.
De acordo com o artigo 51, são consideradas nulas as cláusulas que colocam o consumidor em desvantagem exagerada ou que estabelecem penalidades desproporcionais. Uma multa de 35% por cancelamento, especialmente quando o serviço sequer foi iniciado, é um exemplo típico desse tipo de abusividade.
Além disso, se o fornecedor puder cancelar o contrato sem ônus, mas o consumidor não tiver essa mesma liberdade, há clara violação ao princípio do equilíbrio contratual.
Então toda cláusula penal acima de 10% é ilegal?
Não é bem assim. A validade da cláusula penal depende do caso concreto.
Se o serviço já tiver sido prestado parcialmente, por exemplo, ou se a empresa comprovar que teve prejuízos reais com o cancelamento, é possível justificar uma penalidade um pouco maior.
Vejam-se alguns exemplos da jurisprudência pátria:
Às administradoras de consórcio é facultada a cobrança da taxa de administração em percentual superior a 10%, desde que haja previsão contratual . (TJ-RS – Apelação: 5003968-43.2022.8.21.3001, Relator Des. Carlos Cini Marchionatti, Vigésima Câmara Cível, Data de Julgamento: 26/06/2024)
Entende este STJ que, ausente qualquer peculiaridade, na apreciação da razoabilidade da cláusula penal estabelecida em contrato anterior à Lei 13.786/2018, deve prevalecer o percentual de retenção de 25% (vinte e cinco por cento) dos valores pagos pelos adquirentes, porquanto adequado para indenizar o construtor das despesas gerais e desestimular o rompimento unilateral do contrato. (STJ – REsp: 2024829 SC 2022/0280737-0, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, Data de Julgamento: 07/03/2023)
Mas, de modo geral, a Justiça tem entendido que multas superiores a 10% do valor do contrato, especialmente em situações em que o consumidor desistiu com antecedência e não gerou dano relevante, são desproporcionais.
Nesses casos, o juiz pode reduzir o valor da multa para algo razoável e proporcional — ou, até mesmo, declarar a cláusula nula.
O que fazer se você foi cobrado por uma cláusula assim?
Se você se viu obrigado a pagar uma multa considerada abusiva, ou se teve dificuldades ao tentar cancelar um contrato por causa de uma penalidade desproporcional, é importante buscar orientação jurídica.
Um advogado poderá analisar o contrato, verificar se a cláusula viola o Código de Defesa do Consumidor ou o Código Civil, e propor as medidas cabíveis. Muitas vezes, é possível conseguir a restituição parcial do valor pago ou mesmo uma indenização, dependendo dos prejuízos sofridos.
Conclusão
Cláusulas contratuais não são absolutas. Mesmo estando previstas no papel, elas devem respeitar os princípios da boa-fé, do equilíbrio e da razoabilidade. Multas muito altas por cancelamento — como os 35% que têm aparecido com frequência em certos contratos — precisam ser analisadas com cautela.
Se você passou por algo parecido, converse com um profissional de sua confiança. O direito está aí justamente para corrigir esses desequilíbrios e evitar que o consumidor seja penalizado injustamente.